Apesar de banido em mais de 170 países, o TBT, uma das substâncias químicas mais tóxicas já sintetizadas pelo ser humano, é usado clandestinamente nas águas do litoral brasileiro, o que tem provocado severos impactos na fauna marinha.
Tintas tóxicas ainda são indispensáveis à indústria náutica. Usadas para evitar problemas de bioincrustação, elas há décadas ameaçam o equilíbrio dos ecossistemas marinhos. (imagem: Sxc.hu)
Imensidão ora plácida, ora feroz. Assim foram vistos os oceanos da Terra por homens de todas as épocas e todas as latitudes. Mas o azul dos mares revelaria algo mais que profundezas insólitas ou limites desconhecidos. A partir da década de 1980, cientistas de numerosas nações perceberam que a fauna marinha dava um alerta inequívoco: malformações de origem genética em mexilhões; distúrbios hormonais graves em ostras; estranhezas as mais variadas em lulas, polvos e moluscos de diferentes espécies.
O que estaria por trás dessas aberrações? Aos quadros de poluição generalizada a que a civilização subjugava seus mares, somava-se o uso, na navegação, de uma das substâncias químicas mais tóxicas já sintetizadas pelo ser humano: o TBT. Apesar de banido em mais de 170 países, ele ainda é usado, ilegalmente, nas águas do litoral brasileiro.
Cracas, mariscos, algas e todos aqueles bichos grudentos podem reduzir a velocidade de um navio em até 50%. Como? Esses inoportunos animais tendem a se fixar no casco das embarcações, aumentando o atrito entre a superfície flutuante e as águas. Isso prejudica significativamente o desempenho de qualquer barco. E não se trata de um problema moderno – os portugueses já relatavam esses percalços, quando, nas velhas naus, lançavam-se às suas grandes jornadas exploratórias (ver ‘História das cracas’).
História das cracas
“Povos do passado já conviviam com problemas de navegação e sabiam dos reveses causados pelas bioincrustações”, conta Geraldo Magela. Fenícios e cartaginenses, entre 1500 e 1300 a.C., revestiam os cascos de seus barcos com misturas à base de óleo de baleia, chumbo ou cobre. A receita parecia surtir efeito. Tempos depois, pelos idos dos séculos 17 e 18, era corriqueiro o uso de arsênio, mercúrio e cobre para combater os moluscos oportunistas que pegavam carona sem autorização.
Em 1625, o inglês William Beale patenteou o primeiro agente anti-incrustante: era uma mistura de arsênio, cobre e goma em pó. “Mas, a partir de meados do século 18, cascos de madeira foram substituídos por cascos metálicos; isso tornou mais frequente o uso de agentes químicos anti-incrustantes”, diz Magela. A primeira formulação prática de uso amplamente disseminado é de 1854. Ao final do século 19, mais de 300 patentes já haviam sido registradas.
Eis que, para a redenção dos marujos, a ciência do século 20 agraciou o setor naval com uma promissora tecnologia: as tintas anti-incrustantes, também conhecidas como tintas envenenadas. Com biocidas em sua formulação, elas impedem que qualquer forma de vida se acople às superfícies submersas no mar. Navios; boias de navegação; tubulações marinhas; mesmo sofisticados sistemas de exploração de petróleo. “Tudo o que está submerso no oceano é sujeito à incrustação de organismos marinhos”, diz o biólogo Ricardo Coutinho, do Laboratório de Bioincrustação do Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira (IEAPM). O mercado para essas novas tintas, pois, anunciava-se promissor.
Mas um singelo detalhe passou despercebido. Em meados da década de 1980, pesquisadores de vários países começaram a perceber que, nos ecossistemas marinhos costeiros, algumas formas de vida passaram a apresentar bizarrices as mais diversas – malformações de origem genética, deformações graves, distúrbios morfológicos e sexuais. Tais estranhezas estavam a acontecer em frequência cada vez maior. Não demorou para que o nexo causal fosse estabelecido. As modernas tintas anti-incrustantes exerciam, de fato, severos impactos na fauna marinha, e o que parecia solução mágica à navegação logo se tornou desafio ecológico sem precedente na história dos mares.
Mares contaminados
As tintas anti-incrustantes usadas a partir da década de 1960 tinham em sua formulação o que os químicos chamam de compostos organoestânicos – aqueles baseados na interação entre átomos de carbono e estanho. Entre eles figura um notório vilão: o tributilestanho, vulgo TBT. É uma das substâncias mais tóxicas já sintetizadas pelo ser humano. “Ela pode afetar processos endócrinos em fêmeas da fauna marinha, fazendo-as adquirir características masculinas como aparecimento de pênis”, explica o químico Geraldo Magela, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É um distúrbio conhecido como imposex.
Os bichos mais afetados – não só pelo TBT, mas por organoestânicos em geral – são os gastrópodes, bivalves e cefalópodes. Caramujos, ostras, mexilhões, lulas e polvos são alguns exemplos (ver ‘Moluscos carismáticos’). “Além disso, o TBT tem sido apontado na literatura científica como supressor imunológico [inibe a resposta do sistema de defesa do organismo] em mamíferos; ele pode estar afetando populações de cetáceos em diversos locais do mundo, pois os torna mais suscetíveis a doenças e parasitas”, afirma o oceanógrafo Marcos Fernandez, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Encalhes em massa de golfinhos têm mostrado altas concentrações de TBT nos animais mortos.”
Moluscos carismáticos
Das infindáveis problemáticas ambientais contemporâneas, a questão das tintas anti-incrustantes provavelmente é novidade para o leitor. Dada a gravidade do tema – contaminação química dos oceanos, da vida marinha e do ser humano –, não deveria ele estar na agenda de discussões públicas do país?
A imprensa tem dado pouco ou nenhum espaço à questão. “Talvez porque moluscos não tenham o apelo popular que têm os carismáticos golfinhos e as graciosas baleias, por exemplo", considera Ítalo Castro. “Mas esses pequenos organismos têm grande importância, pois são bioindicadores”, ensina o pesquisador. Uma vez que apresentam determinada anomalia, todos os demais seres expostos ao mesmo quadro de contaminação podem sofrer danos também. O mais temível dos quadros – que tais contaminantes cheguem ao ser humano – normalmente é mera questão de tempo.
E quanto ao homem? “Amostras de fígado, rim, coração e estômago já revelaram a presença dessa substância no ser humano também; provavelmente devido ao consumo de frutos do mar”, preocupa-se Magela. É o que biólogos chamam de biomagnificação. Substâncias presentes em níveis mais baixos da cadeia alimentar são eventualmente transmitidas em níveis mais elevados – do mexilhão ao ser humano, por exemplo, é apenas um passo. Pois nos alimentamos desses animais. “Estudos in vitro e in vivo com mamíferos têm mostrado que o TBT também oferece potencial de risco a populações humanas”, ressalta Fernandez.
Banimento além-mar
Foi em 1982. Os franceses notaram que tintas anti-incrustantes causavam danos sérios ao cultivo de ostras na baía de Arcachon, sudoeste da França. Assim, proibiram seu uso em embarcações de pequeno porte.
Medidas restritivas também foram adotadas pelos britânicos em 1987; e pelos estadunidenses em 1988. Em 2001, a Organização Marítima Internacional (IMO) aprovou a Convenção Internacional sobre Controle de Sistemas Anti-incrustantes, da qual o Brasil é signatário. Com o documento, mais de 170 países decidiram que o uso do TBT em tintas marítimas estaria proibido a partir de 2003 – as nações teriam prazo de cinco anos para adaptação. Finalmente, em 2008, passou a vigorar o banimento integral. Em janeiro daquele ano, a União Europeia decretou que nenhuma embarcação de grande porte, oriunda de qualquer pátria, poderia adentrar seus portos caso estivesse tratada com tintas à base do famigerado composto químico.
Alguns países, no entanto, perduram alheios à problemática. Com vista grossa às convenções internacionais, Bangladesh, Paquistão, Sri Lanka, Coreia, Taiwan, Malásia e Índia ainda não exercem controle sobre o uso de tintas marítimas protetoras. “Tampouco são signatários de qualquer acordo internacional acerca do tema”, acentua Magela.
Quadro atual: por aqui, é proibido usar TBT na pintura de embarcações. “Apesar disso, ele é legalmente produzido e comercializado no país para outras finalidades”, alerta o químico da UFMG. “Inclusive para a produção clandestina de tintas.”
Denúncia
A Ciência Hoje noticia algo grave: há prova inequívoca de uso recente de TBT – o mais perigoso dos organoestânicos – em pleno litoral brasileiro.
Com a proibição do uso da substância em atividades navais, esperava-se que os níveis de contaminação nos ecossistemas marinhos fossem cada vez mais diminutos. De fato, tais índices têm decrescido consideravelmente em diversas partes do mundo – inclusive na maior parte do litoral do Brasil. “Entretanto, contrariando as expectativas, pesquisas recentes comprovam aumento da concentração de TBT em áreas próximas a estaleiros e marinas no Sudeste e no Nordeste”, revela Fernandez. As áreas mais críticas são Paraty (RJ), Recife (PE) e Suape (PE).
O biólogo Ítalo Braga Castro e o oceanógrafo Gilberto Fillmann, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), também constataram resultados semelhantes – não só na costa brasileira, mas em diferentes regiões do litoral sul-americano (segmentos da costa do Peru e da Venezuela, a propósito, são particularmente preocupantes).
Confira o mapa interativo preparado pela CH On-line com as áreas críticas de contaminação por TBT no litoral sul-americano. Ao clicar sobre cada ponto, o leitor tem informações detalhadas sobre os problemas apurados em cada localidade.
Os dados mais recentes foram coletados entre 2011 e 2013. Com técnicas avançadas de cromatografia, a equipe identificou em Paraty quantidades na faixa dos 200 nanogramas de TBT para cada grama (ngSn/g) de amostra de sedimento marinho ou de tecido de molusco. No litoral de Recife, foram cerca de 400; em Suape, 150. São todos valores considerados altos – “suficientes para induzir imposex em algumas espécies da fauna marinha”, alerta Castro. Fillmann confirma que “são números próximos dos níveis críticos, de acordo com os padrões da legislação brasileira”.
Soa o alarme: é certo, portanto, que, apesar da proibição, o TBT continua a ser disseminado ilegalmente nos ecossistemas marinhos.
Mas como? A aposta dos pesquisadores é que ele seja usado clandestinamente na formulação de tintas anti-incrustantes em estaleiros e marinas de pequeno porte, onde a fiscalização tende a ser inexistente ou ineficaz. Mas há um ponto cego na investigação. Pois, segundo os pesquisadores, não há como identificar precisamente a origem do TBT que está sendo emitido de forma ilegal – pois, para isso, seriam necessárias aferições diretas nos cascos de cada uma das embarcações que circulam pelas áreas avaliadas.
“É bastante provável que estaleiros e marinas façam seus ‘coquetéis’ de biocidas para pintar as embarcações; e sobre isso não há controle”, aponta Gilberto Fillmann. Agravante: no Brasil, tintas anti-incrustantes não referenciam no rótulo os biocidas contidos na formulação. “Nem os próprios estaleiros sabem o que estão usando”, diz o oceanógrafo da Furg. “Mas é certo que as grandes empresas do setor, que dominam 95% desse mercado, não usam mais TBT”, garante Ricardo Coutinho. “Quanto a empresas de fundo de quintal, no entanto, nada podemos garantir.”
No Brasil, um dos principais fabricantes de TBT é a Cesbra Química S.A. Detalhe: ela o faz à beira do rio Paraíba do Sul, fonte majoritária de abastecimento de água para a capital carioca. “Jamais entendi o processo de licenciamento ambiental desse empreendimento”, matuta Fernandez. A reportagem procurou a empresa – indagando-a sobre como anda o fluxo de produção e comércio de organoestânicos. Por email, uma resposta lacônica: “No momento estamos totalmente voltados para a produção de biodiesel”.
Se for verdade, o sítio da companhia na internet está desatualizado. Pois nele consta o rol de produtos que ela comercializa; e o TBT é um deles. “O Óxido de Tributilestanho Cesbra é um produto químico orgânico de estanho, fabricado sob rigoroso controle de qualidade e com alto poder biocida contra fungos, bactérias e algas”, lê-se na página virtual da empresa. Lá o cliente ainda encontra uma curiosa indicação de uso: “É utilizado em tintas como agente anti-incrustante.”
Rotas alternativas
“O setor náutico se vê em uma verdadeira sinuca”, revelam os pesquisadores. Não há alternativa totalmente segura para substituir as tintas à base de TBT. “Existem atualmente 20 biocidas em uso na indústria naval”, contabiliza Fernandez. Todos permitidos por lei. Em termos de ecotoxicologia, porém, estão longe de ser soluções ideais (ver ‘Rede’). “Alguns são derivados de defensivos agrícolas; são compostos organoclorados, ou organometálicos de cobre, zinco e manganês; há também triazinas”, elenca o oceanógrafo da Uerj.
Rede
Doze universidades brasileiras estão envolvidas na investigação do impacto das tintas anti-incrustantes – sob os auspícios da Rede Nacional de Estudos em Anti-incrustantes (RNEA), liderada por pesquisadores da Furg e financiada pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Em novembro último, o grupo se reuniu em Rio Grande (RS) para finalizar a primeira etapa de um audacioso projeto: o levantamento de dados de toda a costa brasileira que resultou no panorama mais completo já elaborado no país acerca da problemática dos anti-incrustantes.
Outro caminho possível é o uso de compostos à base de silicone ou teflon. Funcionam a contento, em princípio, mas tornam-se dispendiosos e pouco práticos uma vez que são frágeis e requerem substituição frequente. Há, ainda, uma terceira via, que é a utilização de biocidas naturais. Diversos vêm sendo testados. Mas resultados práticos replicáveis em escala industrial ainda são utopia.
Há outra alternativa, digamos, um tanto mais ousada. “É simplesmente o não uso de substâncias químicas anti-incrustantes”, cita Fernandez. Segundo ele, existem esquemas construtivos que, com base em princípios físicos, podem dar conta do recado. “Abordagens alternativas como microrrugosidades na superfície de contato podem formar uma espécie de barreira física para a fixação dos organismos marinhos”, explana o pesquisador.
No mundo, há mais de uma centena de grupos de estudo dedicados ao combate a bioincrustações. “É um problema de difícil solução que acompanha a humanidade desde que ela começou a navegar”, diz Coutinho. “Infelizmente, não temos perspectiva de curto prazo para solucionar esse desafio.”
Globalização: a via marítima
Interessante lembrete geopolítico: “A globalização cultural e econômica é feita pela internet; mas a globalização física é feita a navio”, pondera Fernandez. Dinheiro e influências imateriais transferem-se por vias eletrônicas, é verdade. Mas minérios, grãos, equipamentos e produtos em geral são transferidos entre as nações quase sempre por navio.
“Por isso, as embarcações são os agentes físicos da globalização.” Em um mundo cada vez mais globalizado – para o bem e para o mal – é evidente que esses fluxos serão cada vez mais intensos. “E tem seus cascos envenenados a maior parte dos grandes navios que hoje singram os mares da Terra.”
Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ
Publicado em 11/02/2014 | Atualizado em 14/02/2014
O que estaria por trás dessas aberrações? Aos quadros de poluição generalizada a que a civilização subjugava seus mares, somava-se o uso, na navegação, de uma das substâncias químicas mais tóxicas já sintetizadas pelo ser humano: o TBT. Apesar de banido em mais de 170 países, ele ainda é usado, ilegalmente, nas águas do litoral brasileiro.
Cracas, mariscos, algas e todos aqueles bichos grudentos podem reduzir a velocidade de um navio em até 50%. Como? Esses inoportunos animais tendem a se fixar no casco das embarcações, aumentando o atrito entre a superfície flutuante e as águas. Isso prejudica significativamente o desempenho de qualquer barco. E não se trata de um problema moderno – os portugueses já relatavam esses percalços, quando, nas velhas naus, lançavam-se às suas grandes jornadas exploratórias (ver ‘História das cracas’).
História das cracas
“Povos do passado já conviviam com problemas de navegação e sabiam dos reveses causados pelas bioincrustações”, conta Geraldo Magela. Fenícios e cartaginenses, entre 1500 e 1300 a.C., revestiam os cascos de seus barcos com misturas à base de óleo de baleia, chumbo ou cobre. A receita parecia surtir efeito. Tempos depois, pelos idos dos séculos 17 e 18, era corriqueiro o uso de arsênio, mercúrio e cobre para combater os moluscos oportunistas que pegavam carona sem autorização.
Em 1625, o inglês William Beale patenteou o primeiro agente anti-incrustante: era uma mistura de arsênio, cobre e goma em pó. “Mas, a partir de meados do século 18, cascos de madeira foram substituídos por cascos metálicos; isso tornou mais frequente o uso de agentes químicos anti-incrustantes”, diz Magela. A primeira formulação prática de uso amplamente disseminado é de 1854. Ao final do século 19, mais de 300 patentes já haviam sido registradas.
Eis que, para a redenção dos marujos, a ciência do século 20 agraciou o setor naval com uma promissora tecnologia: as tintas anti-incrustantes, também conhecidas como tintas envenenadas. Com biocidas em sua formulação, elas impedem que qualquer forma de vida se acople às superfícies submersas no mar. Navios; boias de navegação; tubulações marinhas; mesmo sofisticados sistemas de exploração de petróleo. “Tudo o que está submerso no oceano é sujeito à incrustação de organismos marinhos”, diz o biólogo Ricardo Coutinho, do Laboratório de Bioincrustação do Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira (IEAPM). O mercado para essas novas tintas, pois, anunciava-se promissor.
Nos ecossistemas marinhos costeiros, algumas formas de vida passaram a apresentar malformações de origem genética, deformações graves, distúrbios morfológicos e sexuais
Não deu outra. A partir da década de 1950, tintas anti-incrustantes tornaram-se item fundamental para a indústria náutica. Para navios que singravam os mares em longas rotas comerciais, a economia de combustível chegaria a milhões de dólares ao cabo de poucos anos. Com essas novas tintas, empresas de prospecção de petróleo também deixaram de dispender boas cifras na manutenção de sistemas submersos. Era muito dinheiro em jogo.Mas um singelo detalhe passou despercebido. Em meados da década de 1980, pesquisadores de vários países começaram a perceber que, nos ecossistemas marinhos costeiros, algumas formas de vida passaram a apresentar bizarrices as mais diversas – malformações de origem genética, deformações graves, distúrbios morfológicos e sexuais. Tais estranhezas estavam a acontecer em frequência cada vez maior. Não demorou para que o nexo causal fosse estabelecido. As modernas tintas anti-incrustantes exerciam, de fato, severos impactos na fauna marinha, e o que parecia solução mágica à navegação logo se tornou desafio ecológico sem precedente na história dos mares.
Mares contaminados
As tintas anti-incrustantes usadas a partir da década de 1960 tinham em sua formulação o que os químicos chamam de compostos organoestânicos – aqueles baseados na interação entre átomos de carbono e estanho. Entre eles figura um notório vilão: o tributilestanho, vulgo TBT. É uma das substâncias mais tóxicas já sintetizadas pelo ser humano. “Ela pode afetar processos endócrinos em fêmeas da fauna marinha, fazendo-as adquirir características masculinas como aparecimento de pênis”, explica o químico Geraldo Magela, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É um distúrbio conhecido como imposex.
Os bichos mais afetados – não só pelo TBT, mas por organoestânicos em geral – são os gastrópodes, bivalves e cefalópodes. Caramujos, ostras, mexilhões, lulas e polvos são alguns exemplos (ver ‘Moluscos carismáticos’). “Além disso, o TBT tem sido apontado na literatura científica como supressor imunológico [inibe a resposta do sistema de defesa do organismo] em mamíferos; ele pode estar afetando populações de cetáceos em diversos locais do mundo, pois os torna mais suscetíveis a doenças e parasitas”, afirma o oceanógrafo Marcos Fernandez, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Encalhes em massa de golfinhos têm mostrado altas concentrações de TBT nos animais mortos.”
Moluscos carismáticos
Das infindáveis problemáticas ambientais contemporâneas, a questão das tintas anti-incrustantes provavelmente é novidade para o leitor. Dada a gravidade do tema – contaminação química dos oceanos, da vida marinha e do ser humano –, não deveria ele estar na agenda de discussões públicas do país?
A imprensa tem dado pouco ou nenhum espaço à questão. “Talvez porque moluscos não tenham o apelo popular que têm os carismáticos golfinhos e as graciosas baleias, por exemplo", considera Ítalo Castro. “Mas esses pequenos organismos têm grande importância, pois são bioindicadores”, ensina o pesquisador. Uma vez que apresentam determinada anomalia, todos os demais seres expostos ao mesmo quadro de contaminação podem sofrer danos também. O mais temível dos quadros – que tais contaminantes cheguem ao ser humano – normalmente é mera questão de tempo.
E quanto ao homem? “Amostras de fígado, rim, coração e estômago já revelaram a presença dessa substância no ser humano também; provavelmente devido ao consumo de frutos do mar”, preocupa-se Magela. É o que biólogos chamam de biomagnificação. Substâncias presentes em níveis mais baixos da cadeia alimentar são eventualmente transmitidas em níveis mais elevados – do mexilhão ao ser humano, por exemplo, é apenas um passo. Pois nos alimentamos desses animais. “Estudos in vitro e in vivo com mamíferos têm mostrado que o TBT também oferece potencial de risco a populações humanas”, ressalta Fernandez.
Banimento além-mar
Foi em 1982. Os franceses notaram que tintas anti-incrustantes causavam danos sérios ao cultivo de ostras na baía de Arcachon, sudoeste da França. Assim, proibiram seu uso em embarcações de pequeno porte.
Medidas restritivas também foram adotadas pelos britânicos em 1987; e pelos estadunidenses em 1988. Em 2001, a Organização Marítima Internacional (IMO) aprovou a Convenção Internacional sobre Controle de Sistemas Anti-incrustantes, da qual o Brasil é signatário. Com o documento, mais de 170 países decidiram que o uso do TBT em tintas marítimas estaria proibido a partir de 2003 – as nações teriam prazo de cinco anos para adaptação. Finalmente, em 2008, passou a vigorar o banimento integral. Em janeiro daquele ano, a União Europeia decretou que nenhuma embarcação de grande porte, oriunda de qualquer pátria, poderia adentrar seus portos caso estivesse tratada com tintas à base do famigerado composto químico.
Alguns países, no entanto, perduram alheios à problemática. Com vista grossa às convenções internacionais, Bangladesh, Paquistão, Sri Lanka, Coreia, Taiwan, Malásia e Índia ainda não exercem controle sobre o uso de tintas marítimas protetoras. “Tampouco são signatários de qualquer acordo internacional acerca do tema”, acentua Magela.
No Brasil, é proibido usar TBT na pintura de embarcações. Mas ele é legalmente produzido e comercializado no país para outras finalidades
No Brasil, a Marinha foi a primeira instituição a tomar medidas responsáveis em relação ao tema: nos idos de 2003, suspendera o uso do TBT em todas as suas embarcações. Depois disso, a legislação seguiu na carona, com a publicação da portaria N. 76/DPC, de 30 de julho de 2007.Quadro atual: por aqui, é proibido usar TBT na pintura de embarcações. “Apesar disso, ele é legalmente produzido e comercializado no país para outras finalidades”, alerta o químico da UFMG. “Inclusive para a produção clandestina de tintas.”
Denúncia
A Ciência Hoje noticia algo grave: há prova inequívoca de uso recente de TBT – o mais perigoso dos organoestânicos – em pleno litoral brasileiro.
Com a proibição do uso da substância em atividades navais, esperava-se que os níveis de contaminação nos ecossistemas marinhos fossem cada vez mais diminutos. De fato, tais índices têm decrescido consideravelmente em diversas partes do mundo – inclusive na maior parte do litoral do Brasil. “Entretanto, contrariando as expectativas, pesquisas recentes comprovam aumento da concentração de TBT em áreas próximas a estaleiros e marinas no Sudeste e no Nordeste”, revela Fernandez. As áreas mais críticas são Paraty (RJ), Recife (PE) e Suape (PE).
O biólogo Ítalo Braga Castro e o oceanógrafo Gilberto Fillmann, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), também constataram resultados semelhantes – não só na costa brasileira, mas em diferentes regiões do litoral sul-americano (segmentos da costa do Peru e da Venezuela, a propósito, são particularmente preocupantes).
Confira o mapa interativo preparado pela CH On-line com as áreas críticas de contaminação por TBT no litoral sul-americano. Ao clicar sobre cada ponto, o leitor tem informações detalhadas sobre os problemas apurados em cada localidade.
Os dados mais recentes foram coletados entre 2011 e 2013. Com técnicas avançadas de cromatografia, a equipe identificou em Paraty quantidades na faixa dos 200 nanogramas de TBT para cada grama (ngSn/g) de amostra de sedimento marinho ou de tecido de molusco. No litoral de Recife, foram cerca de 400; em Suape, 150. São todos valores considerados altos – “suficientes para induzir imposex em algumas espécies da fauna marinha”, alerta Castro. Fillmann confirma que “são números próximos dos níveis críticos, de acordo com os padrões da legislação brasileira”.
Soa o alarme: é certo, portanto, que, apesar da proibição, o TBT continua a ser disseminado ilegalmente nos ecossistemas marinhos.
Mas como? A aposta dos pesquisadores é que ele seja usado clandestinamente na formulação de tintas anti-incrustantes em estaleiros e marinas de pequeno porte, onde a fiscalização tende a ser inexistente ou ineficaz. Mas há um ponto cego na investigação. Pois, segundo os pesquisadores, não há como identificar precisamente a origem do TBT que está sendo emitido de forma ilegal – pois, para isso, seriam necessárias aferições diretas nos cascos de cada uma das embarcações que circulam pelas áreas avaliadas.
“É bastante provável que estaleiros e marinas façam seus ‘coquetéis’ de biocidas para pintar as embarcações; e sobre isso não há controle”, aponta Gilberto Fillmann. Agravante: no Brasil, tintas anti-incrustantes não referenciam no rótulo os biocidas contidos na formulação. “Nem os próprios estaleiros sabem o que estão usando”, diz o oceanógrafo da Furg. “Mas é certo que as grandes empresas do setor, que dominam 95% desse mercado, não usam mais TBT”, garante Ricardo Coutinho. “Quanto a empresas de fundo de quintal, no entanto, nada podemos garantir.”
No Brasil, um dos principais fabricantes de TBT é a Cesbra Química S.A. Detalhe: ela o faz à beira do rio Paraíba do Sul, fonte majoritária de abastecimento de água para a capital carioca. “Jamais entendi o processo de licenciamento ambiental desse empreendimento”, matuta Fernandez. A reportagem procurou a empresa – indagando-a sobre como anda o fluxo de produção e comércio de organoestânicos. Por email, uma resposta lacônica: “No momento estamos totalmente voltados para a produção de biodiesel”.
Se for verdade, o sítio da companhia na internet está desatualizado. Pois nele consta o rol de produtos que ela comercializa; e o TBT é um deles. “O Óxido de Tributilestanho Cesbra é um produto químico orgânico de estanho, fabricado sob rigoroso controle de qualidade e com alto poder biocida contra fungos, bactérias e algas”, lê-se na página virtual da empresa. Lá o cliente ainda encontra uma curiosa indicação de uso: “É utilizado em tintas como agente anti-incrustante.”
Rotas alternativas
“O setor náutico se vê em uma verdadeira sinuca”, revelam os pesquisadores. Não há alternativa totalmente segura para substituir as tintas à base de TBT. “Existem atualmente 20 biocidas em uso na indústria naval”, contabiliza Fernandez. Todos permitidos por lei. Em termos de ecotoxicologia, porém, estão longe de ser soluções ideais (ver ‘Rede’). “Alguns são derivados de defensivos agrícolas; são compostos organoclorados, ou organometálicos de cobre, zinco e manganês; há também triazinas”, elenca o oceanógrafo da Uerj.
Rede
Doze universidades brasileiras estão envolvidas na investigação do impacto das tintas anti-incrustantes – sob os auspícios da Rede Nacional de Estudos em Anti-incrustantes (RNEA), liderada por pesquisadores da Furg e financiada pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Em novembro último, o grupo se reuniu em Rio Grande (RS) para finalizar a primeira etapa de um audacioso projeto: o levantamento de dados de toda a costa brasileira que resultou no panorama mais completo já elaborado no país acerca da problemática dos anti-incrustantes.
Outro caminho possível é o uso de compostos à base de silicone ou teflon. Funcionam a contento, em princípio, mas tornam-se dispendiosos e pouco práticos uma vez que são frágeis e requerem substituição frequente. Há, ainda, uma terceira via, que é a utilização de biocidas naturais. Diversos vêm sendo testados. Mas resultados práticos replicáveis em escala industrial ainda são utopia.
Há outra alternativa, digamos, um tanto mais ousada. “É simplesmente o não uso de substâncias químicas anti-incrustantes”, cita Fernandez. Segundo ele, existem esquemas construtivos que, com base em princípios físicos, podem dar conta do recado. “Abordagens alternativas como microrrugosidades na superfície de contato podem formar uma espécie de barreira física para a fixação dos organismos marinhos”, explana o pesquisador.
No mundo, há mais de uma centena de grupos de estudo dedicados ao combate a bioincrustações. “É um problema de difícil solução que acompanha a humanidade desde que ela começou a navegar”, diz Coutinho. “Infelizmente, não temos perspectiva de curto prazo para solucionar esse desafio.”
Globalização: a via marítima
Interessante lembrete geopolítico: “A globalização cultural e econômica é feita pela internet; mas a globalização física é feita a navio”, pondera Fernandez. Dinheiro e influências imateriais transferem-se por vias eletrônicas, é verdade. Mas minérios, grãos, equipamentos e produtos em geral são transferidos entre as nações quase sempre por navio.
“Por isso, as embarcações são os agentes físicos da globalização.” Em um mundo cada vez mais globalizado – para o bem e para o mal – é evidente que esses fluxos serão cada vez mais intensos. “E tem seus cascos envenenados a maior parte dos grandes navios que hoje singram os mares da Terra.”
Esta reportagem, publicada na CH 311, inaugura a série especial ‘Oceanos envenenados’, que irá ao ar esta semana na CH On-line. Confira! Clique no ícone a seguir para baixar o arquivo em PDF deste texto.
Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ
Publicado em 11/02/2014 | Atualizado em 14/02/2014
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CASTRO, I.B., WESTPHAL, E.; FILLMANN G. ‘Tintas anti-incrustantes de terceira geração: novos biocidas no ambiente aquático’ in Química Nova. Vol. 34, n. 6, 2011.
ALMEIDA, E.; DIAMANTINO, T.; SOUSA, O. ‘Breve história das tintas antivegetativas’ in Corrosão e protecção de materiais. Vol. 26, n.1, 2007.
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