terça-feira, 12 de julho de 2011

Desproteger os ambientes e os povos costeiros: mais uma ‘função’ do novo código florestal, artigo de Riguel F. Contente e Diego Martinez

Desproteger os ambientes e os povos costeiros: mais uma ‘função’ do novo código florestal, artigo de Riguel F. Contente e Diego Martinez

[EcoDebate] As modificações propostas pelo projeto de lei nº 1876/99, o substitutivo do Código Florestal (lei nº 4771/65), incontestavelmente são um precedente legal que permitirá o aumento do desmatamento no nosso país.
Tal iniciativa tem motivado o meio científico nacional e parte da mídia a ressaltar os incontáveis benefícios socioambientais obtidos quando se tem as florestas preservadas nos ambientes terrestres.
Contudo, muito pouco tem sido debatido e esclarecido à respeito dos pontos do substitutivo que poderão trazer à legalidade ações e atividades que afetarão adversamente os ecossistemas costeiros do nosso país.

A zona costeira é o espaço de vida de mais da metade da população mundial e esta situação também ocorre no Brasil. Nossa costa abriga grandes metrópoles brasileiras, bem como atividades urbanas e industriais que contrastam com atividades extrativistas (e.g. pesca artesanal) e agriculturais de subsistência, que ainda são intensas, socioeconomicamente relevantes e persistem em diversas localidades. Neste contexto, o espaço costeiro é marcado pelas contradições entre crescimento econômico acelerado, representado por especulação imobiliária, atividades indústrias e portuárias, e as tentativas de uso ordenado e conservação da biodiversidade para se obter sustentabilidade dos bens e serviços ambientais. Inúmeras unidades de conservação e áreas naturais preservadas na costa brasileira são a ‘casa’ de diversas populações tradicionais. O meio de vida de muitas dessas populações depende diretamente dos ambientes costeiros, bem como da qualidade e adequada gestão dos seus recursos ambientais.
Estuários são corpos d’água costeiros em que há a mistura da água doce proveniente de rios com a água do mar. Possuem excepcional biodiversidade e, portanto, grande relevância para sua conservação e gestão. Tais zonas, devido à diversas particularidades hidrológicas e geomorfológicas, retêm uma quantidade muito grande de nutrientes. Isso favorece a existência de biodiversidade e produção biológica elevadas, o que é prontamente comprovado ao se observar a enorme quantidade de animais que lá vivem.
Manguezais são extensas formações vegetais de planícies litorâneas, formadas por um pequeno número de espécies de plantas halófitas, que são extremamente adaptadas à vida em áreas inundadas pela água salgada. Estas plantas, juntamente com o fitoplâncton, são os principais produtores primários dos estuários e, portanto, responsáveis por essa elevada produtividade biológica.

Com segurança, podemos afirmar embasados em consistentes e inúmeros estudos científicos, que os manguezais são um dos ecossistemas costeiros mais importantes dos trópicos, em termos ecológicos e econômicos, uma vez que têm capacidade de fornecer uma diversa gama de serviços e bens ambientais, dentre os quais se destacam: suporte à biodiversidade e preservação de recursos genéticos ao constituir, devido à alta produtividade, locais de alimentação e reprodução a diversas espécies de aves, peixes, moluscos, crustáceos e alguns mamíferos; manutenção de inúmeros estoques de recursos pesqueiros ao prover habitat a diversas espécies nos seus estágios inicias de vida; proteção e estabilização da linha de costa, atenuando efeitos de tempestades e outros processos com potencial de causar bruscas alterações das feições costeiras; manutenção da qualidade de água, através do processamento de matéria orgânica e nutrientes e retenção de particulados; e controle biológico de espécies vetores de doenças, como mosquitos e outros insetos.

Apesar dos conceitos de bens e serviços ambientais terem sido melhor estabelecidos só recentemente, nosso Código Florestal, promulgado há 46 anos atrás, já reconhecia a importância dos sistemas vegetados, estabelecendo Áreas de Proteção Permanentes (APP), e a Resolução CONAMA nº 303/2002, por sua vez, regulamenta algumas definições do Código Florestal e estabelece que são APPs as áreas “em manguezal, em toda a sua extensão”. No entanto, em uma atitude baseada em interesses que sumariamente desconsideraram qualquer base científica, a câmara dos deputados do congresso nacional aprovou, em ampla maioria, a redação final do substitutivo que retira dos manguezais o status de APP. Remover manguezais interfere negativamente em processos ecológicos, atividades pesqueiras comerciais e de subsistência, além de eliminar todos os serviços ambientais acima mencionados.
Para agravar essa situação, o substitutivo aprovado estimulará a redução da mata ciliar (considerada APP) ao permitir sua supressão em rios com menos de 10 metros de largura após os 15 metros do nível regular do rio. O texto anterior permitia a supressão após os 30 metros do nível mais alto do rio, ou seja, é mais coerente em termos ecológicos por considerar as oscilações naturais do rio e por garantir maior cobertura florestal. Como exaustiva e recorrentemente constatado em incontáveis estudos em todo o mundo, o estado precário de matas ciliares é a principal causa de assoreamento e alteração dramática da qualidade das águas dos rios. Os ecossistemas florestais quando íntegros minimizam a movimentação de sedimentos do solo aos cursos d`água. Assim, rios com matas ciliares reduzidas ou inexistentes provêm aos estuários águas excessivamente turvas que transportam elevada quantidade de sedimento. Esse padrão é típico em bacias hidrográficas com intensa atividade agrícola e baixa cobertura florestal. Essas águas, com tal padrão anômalo, podem causar perda da qualidade dos habitats estuarinos e, portanto, perda de suas funções ecológicas. Tal elevado aporte de sedimento pode alterar a produção biológica nos estuários, afetando sua cadeia trófica através: (i) da geração de águas turvas que reduzem a penetração da luz na água, reduzindo ou mesmo inibindo a produção primária das microalgas e das algas que habitam os fundos estuarinos; e (ii) da redução da oferta alimento aos juvenis de peixes e crustáceos e às aves marinhas, por conta do assoreamento ou até mesmo supressão de habitats, como canais rasos de maré, planícies de marés e o leito principal do estuário, que são ecologicamente críticos por abrigarem elevada abundância alimento (i.e. invertebrados que vivem associados ao substrato). Vale destacar que o efeito sinérgico do desmatamento nos inúmeros rios de pequeno porte que existem uma bacia hidrográfica poderá resultar num impacto muito significativo nos estuários que recebem suas águas.
Cabe ressaltar também que a persistência no suprimento de água doce, garantida por matas ciliares íntegras e conservação das nascentes, faz com que o estuário tenha gradiente de salinidade, ou seja, zonas com menor salinidade mais próximas aos rios e zonas com maior salinidade mais próximas do mar. Muitas espécies estuarinas têm preferências claras por cada zona do estuário e a perda de tal persistência no suprimento de água pode ocasionar redução de uma zona e, portanto redução de habitat. Por exemplo, o Robalo-peva (Centropomus parallelus), um peixe estuarino altamente visado pela pesca esportiva e comercial, passa seus estágios iniciais de vida em zonas de baixa salinidade dos estuários. Uma potencial redução no suprimento de água doce aos estuários poderá reduzir a área ‘berçário’ dessa espécie e, consequentemente, reduzir as populações adultas e afetar a produção pesqueira.
Outra problemática do substitutivo aprovado é declarar, expressamente (parágrafo 3º do artigo 4º), que os apicuns não são APP. Apicuns são planícies hipersalinas de transição entre os ecossistemas terrestres e os manguezais; são reconhecidamente vitais para a manutenção dos manguezais, sendo que alguns especialistas já os incluem como parte integrante dos manguezais. Esta falta de proteção explícita abre espaço para a eliminação destes habitats principalmente pela carcinocultura extensiva, que cresce no país (em especial na região nordeste) e que tradicionalmente se instala nessas áreas. Esta atividade não só suprime mangues como também normalmente não adota práticas eficientes de controle da qualidade hídrica, comprometendo a saúde dos manguezais e das águas costeiras adjacentes.
Para não dizer que o substitutivo não cita os manguezais, este ecossistema aparece no artigo 8º, que trata da intervenção e supressão vegetal, consta que nas restingas estabilizadoras de mangues, a supressão “poderá ser autorizada excepcionalmente em locais onde a função ecológica do manguezal esteja comprometida, para execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda.” No entanto, os parâmetros para definir um manguezal como ecologicamente comprometido são ainda controversos, senão prematuros. Sabe-se que os manguezais possuem alta capacidade de recuperação. Além disso, o replantio para o restabelecimento do ecossistema tem se mostrado muito eficiente. Alegar “função ecológica comprometida” é um argumento fraco e inconsistente que serve apenas para justificar a supressão de mangues impactados, argumento que alguns de nós já se cansaram de ouvir durante discussões conflituosas de tentativas de zoneamentos e ordenamento do uso do solo. Além disso, é fato que no litoral brasileiro encontramos diversas ocupações irregulares em áreas de manguezal, formando favelas sobre palafitas. Porém, seria mais sensato que essas populações pudessem ser realocadas dos manguezais, que são áreas relativamente inóspitas para a habitação humana, para áreas mais apropriadas. Conclui-se que este ponto do substitutivo não só desconsidera os valores ecológicos dos manguezais, como também os definem como um lugar para abrigar pessoas socialmente desfavorecidas, resultando numa lei quase que preconceituosa.
O aumento da produção agropecuária é um dos principais argumentos utilizados para justificar as modificações do Código. De fato, o relatório da Avaliação Ecossistêmica do Milênio da UNESCO coloca que o aumento na produção de alimentos nas últimas décadas foi essencial para atender à demanda de uma população mundial em crescimento, evitando, em termos globais, um quadro de desnutrição pior do que o que se observa hoje em dia. No entanto, o mesmo relatório expõe os altos custos que os ecossistemas e a sociedade pagaram por adotar o modelo agrobusiness de produção. Estima-se que mais de 60% dos serviços ecossistêmicos no mundo já estejam degradados. Em termos regionais, se observa aumentos do nível de pobreza, indicativo de que esse modelo de agronegócio, ao desconsiderar a integridade funcional dos ecossistemas nos seus processos produtivos, agrava as desigualdades sociais. Isso ocorre porque as populações mais pobres são as mais dependentes dos serviços ambientais e, logo, as mais despreparadas a lidarem com a perda desses serviços.
Na zona costeira brasileira, um grande número de pessoas dependem diretamente da pesca e atividades extrativistas. O pescador artesanal, o catador de caranguejo, o pequeno maricultor são pessoas com baixa renda e baixa escolaridade, cujo sustento é diretamente condicionado à conservação dos estuários, manguezais, apicuns. Essas pessoas também sofrem as consequencias da exclusão social e possuem reduzidíssimo poder de influência sobre as políticas do governo. Ao permitir que esses ambientes sejam degradados, o novo código florestal poderá prejudicá-los ou mesmo impossibilitá-los de exercerem seus ofícios e assim amplificará as assimetrias de poder e de desigualdades na dimensão social através da degradação na dimensão ambiental.
Continuamos avançando na identificação e descrição dos processos ecológicos estruturadores dos ecossistemas estuarinos, de suas conexões com ambientes adjacentes e de sua importância econômica à sociedade, através da valoração dos seus serviços ambientais. Esses avanços no conhecimento só vêm reafirmando a importância destes ambientes a sociedade. Entretanto, a grande maioria dos nossos legisladores não está alinhada a essa visão, fato comprovado pela aprovação do substitutivo por ampla maioria. O substitutivo desconsiderou o conhecimento científico, bem como o contexto social, ao carregar o potencial de agravar as persistentes injustiças sociais na nossa zona costeira. Sua aprovação no congresso foi uma clara demonstração à sociedade brasileira de imposição de um processo de tomada de decisão completamente retrógrado e inaceitável para os dias atuais.
A possibilidade de reduzir a integridade ecológica dos estuários via supressão de manguezais e redução das matas ciliares por meios legais é uma atitude que não está alinhada às políticas ambientais estabelecidas pelo governo, como a Política Nacional do Meio Ambiente, e que, acima de tudo, fere a constituição federal, porque não zela pelo nosso patrimônio natural e porque uma parcela grande dos brasileiros habitantes da zona costeira não terão um “meio (em que vivem) ecologicamente equilibrado,(…) essencial à sadia qualidade de vida” como preconiza o artigo 225 da CF.

Diego Martinez, biólogo, mestrando, trabalha com populações tradicionais no sistema estuarino de Cananéia-Iguape
Riguel F. Contente, Biólogo, doutorando em Oceanografia Biológica, Laboratório de Ecologia Reprodutiva – LABER, Instituto Oceanográfico, USP

EcoDebate, 12/07/2011
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